Raul Seixas “entregou” Paulo Coelho aos militares? Relembre a história de acordo com a biografia do cantor baiano

Raul Seixas e Paulo Coelho, uma das maiores duplas da história da música brasileira. Foto: Reprodução / Jornal O Globo
Um capítulo amargo na história da parceria entre Raul Seixas e Paulo Coelho – e na história do próprio Brasil – é o período do regime militar, entre 1964 e 1985. Em um dos momentos mais pesados da ditadura, com o AI-5, nos anos 70, onde todas as letras de canções precisavam receber aprovações dos militares, a dupla sofreu com a censura.
O disco de estreia de Raul, “Krig-ha, bandolo!”, lançado em 1973, chamou a atenção dos militares não só pelos temas das letras – apesar de algumas críticas bem óbvias ao regime, como “Dentadura Postiça”, terem passado batido – mas também pelo título do álbum. “[Krig-ha, bandolo?] Que merda é esta? Em que língua isso está escrito?” interrogou um policial que enquadrou Paulo Coelho no Departamento de Ordem e Política Social (Dops), em maio de 1974.
Clique aqui e relembre como surgiu a parceria entre Raul e Paulo.
Essa é uma das histórias presentes na biografia “Não diga que a canção está perdida”, escrita por Jotabê Medeiros, e que traz tudo sobre Raul Seixas. Neste texto, você lerá sobre o interrogatório e a prisão de Paulo Coelho e como esse episódio mudou a sua relação com o Raul.
Após o estrondoso sucesso do primeiro disco, a dupla iniciou os trabalhos do segundo. O “Gita”, que chegou ao público em 1974, apresentou clássicos como a própria faixa-título, além de “Medo da Chuva” e “Sociedade Alternativa”, por exemplo. A popularidade de Raul e Paulo estava aumentando e suas ideias estavam chegando em cada vez mais pessoas, o que irritava os militares e suas paranóias.
“No dia 24 de maio de 1974, Paulo Coelho recebeu um telefonema de Raul Seixas. O parceiro comunicava ter sido intimado a comparecer na segunda-feira ao Dops [Departamento de Ordem Política e Social] para prestar esclarecimentos sobre o conteúdo de Krig-ha, bandolo!. Raul pedia que Paulo fosse com ele, mas não porque tivesse medo ou coisa do tipo, apenas para deixar mais consistentes as eventuais explicações, já que dividiam a autoria de cinco músicas.”
Raul foi o primeiro dos dois a ser interrogado. Ao voltar do corredor para onde foi levado, tentou mandar um recado cantarolando uma música para Paulo Coelho, que estava esperando sentado enquanto lia um jornal.
“Meia hora depois, [Raul] regressou. Em vez de ir direto até onde o parceiro estava sentado, dirigiu-se a um telefone público na parede e fingiu discar um número. Em seguida, começou a cantarolar:
– My dear partner, the men want to talk to you, not to me… [Querido parceiro, os caras querem falar contigo, não comigo…]
Mas Paulo não pegou o recado que Raul lhe transmitia. Ele estava de pé, rindo da maluquice do amigo, já se preparando para ir embora, sair daquela atmosfera de pesadelo plácido.”
Até que Paulo Coelho entendeu o recado da pior maneira possível. Quando se preparava para ir embora, um militar colocou a mão no seu ombro o avisando que ele ainda não estava liberado e teria que prestar esclarecimentos sobre o “Krig-ha, bandolo!”. Segundo o que conta Jotabê no livro, Coelho não foi interrogado de imediato, ficando preso por algumas horas em “um cubículo que exalava cheiro de urina com desinfetante”.
Quando enfim foi confrontado pelos militares, o escritor percebeu que os policiais tinham um exemplar da história em quadrinhos que acompanhava o encarte do disco. Para eles, aquilo poderia ser um indício de alguma mensagem subliminar e uma possível ameaça para o governo – o que seria reforçado posteriormente com a “sociedade alternativa”.
“O policial que o acompanhava jogou sobre a mesa a história em quadrinhos de quatro páginas que acompanhava o LP Krig-ha, bandolo!
– Que merda é esta? – perguntou o policial ao escritor, apontando o gibi de Krig-ha na mesa
– Este é o encarte que acompanha o LP lançado por mim e por Raul.
– O que significa Krig-ha, bandolo?
– Significa: ‘cuidado com o inimigo!’.
– Inimigo? Que inimigo? O governo? Em que língua isso está escrito?
– Não! Não é nada contra o governo.”
Parte do encarte do disco Krig-ha, bandolo!. Foto: Reprodução
Sobrou até para a esposa de Paulo, a Adalgisa. Foi ela quem ilustrou os desenhos presentes na HQ, e por isso os militares decidiram que também queriam ouvir uma explicação dela.
“Depois, Paulo contou que o gibi fora uma invenção sua, e a sua mulher [Adalgisa], ilustradora, havia desenhado.
– E como se chama a sua mulher? Quero ouvi-lá também. Onde ela está agora?
Paulo entrou em pânico. Dizer o nome poderia ser fatal para Adalgisa, mas não dizer poderia ser uma armadilha, pois eles descobriram facilmente. Contou [o nome] ao troglodita, que o intimou a levantar e seguir.
– Vamos lá, vamos buscar a patroa.”
Sem ter o que fazer, Paulo deixou o lugar onde estava sendo interrogado em um veículo sob a vigilância de quatro policiais. Coelho tentou fazer uma ligação por telefone, num orelhão, para Adalgisa, com medo de sofrer mais alguma violência, pois sabia que possuía maconha em sua casa e que os militares iriam encontrar a droga. Ele queria que a sua esposa jogasse fora antes que eles chegassem.
“O escritor foi enfiado em uma perua branca e preta, com o logotipo da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, entre dois policiais armados e mais dois no banco da frente. Ele ainda tentou pedir ao policial para dar um telefonema em um orelhão, na rua. Queria pedir para Gisa, caso ela atendesse, jogar fora uma caixinha com maconha que guardava na sala, que poderia complicar a vida deles. Já em seu prédio, três policiais subiram com ele até o apartamento, o outro ficou no veículo.”
Paulo Coelho e Adalgisa Rios. Foto: Reprodução
Ao chegar em casa acompanhado por policiais, Paulo logo tentou explicar a situação para sua esposa, em uma tentativa de amenizar o pânico. No apartamento do casal, inclusive, os militares realmente encontraram a maconha, mas pouco se importaram. Eles se preocupavam mais com as ideias que o escritor propagava do que com o que ele usava ou deixava de usar.
“– Meu amor, eles são do Dops e precisam de alguns esclarecimentos sobre meu disco com o Raul e sobre o gibizinho que você e eu fizemos para o encarte.
– Pois não, estou às ordens. O que os senhores querem saber? – disse Gisa.
Mas a repressão não segue regras de convivência social. Eles queriam interrogar Gisa à sua própria maneira e lhe disseram que ela tinha que ir com eles. Antes, porém, fariam uma busca no apartamento. Acharam a maconha, mas não deram a menor importância. Para a polícia política, tentar aprisionar as ideias sempre fora mais importante do que combater crimes comezinhos de Distrito Policial, como porte de maconha.”
Paulo foi novamente preso, desta vez com Adalgisa. Eles foram interrogados por horas sobre a história em quadrinhos e também sobre a sociedade alternativa, que, para os militares, era claramente “um projeto comunista”.
“Levaram Paulo Coelho e Adalgisa Rios para a prisão. Inicialmente, sem torturas físicas, foram interrogados durante horas, e quase sempre o policial que os interrogava tinha à sua frente a HQ ‘A fundação de Krig-ha’. Outra obsessão era saber o que significava o elogio à tal Sociedade Alternativa – estavam firmemente convencidos de que se tratava do projeto de uma célula comunista.”
Depois de três horas sendo interrogado, os policiais liberaram o casal. Raul Seixas, que estava esperando por Paulo Coelho, afirma Jotabê, o reencontrou e o convidou para um café. Meio sem clima, Paulo recusou e disse que queria ir pra casa dos pais. O cantor então pediu um táxi para o escritor, que entrou no carro, mas não foi muito longe…
“Raul chamou um táxi, Paulo entrou, mas o veículo não andou mais que algumas quadras. O táxi foi fechado por dois carros com homens armados, ele foi retirado de dentro e foi levado deitado no chão do veículo dos captores sem poder olhar o caminho. A liberação tinha sido uma farsa: durante duas semanas, preso em um lugar que nunca saberia onde ficava, o escritor foi torturado física e psicologicamente.”
Ter sido torturado marcou a vida de Paulo Coelho e as suas relações. Raul Seixas, seu parceiro, deixou de atender às suas ligações, segundo Paulo. Já a sua esposa, Adalgisa, não quis mais continuar com Coelho após ter sido “entregue” à polícia por ele, que informou para os militares o seu nome e onde ela estava. E o seu pai vivia sempre em alerta após o episódio, chegando a comprar uma arma e prometendo atirar nos militares caso eles retornassem.
“O episódio deixaria um vácuo permanente na relação de Raul e Paulo, que nunca mais seria a mesma. Paulo Coelho recorda a difícil retomada da rotina após o tempo cativo e sob tortura. ‘Vou para a casa de meus pais. Minha mãe envelheceu, meu pai diz que não devo mais sair na rua. Procuro os amigos, procuro o cantor, e ninguém responde aos meus telefonemas.’ O escritor parece sugerir, talvez pela primeira vez inequivocamente, que Raul lhe negou apoio quando mais precisou, quando saiu da cana.”
Paulo Coelho, escritor e principal parceiro de Raul Seixas. Foto: Reprodução
Quatro décadas depois, em 2014, com a divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que apurou as violações de direitos humanos, como prisões arbitrárias, tortura, desaparecimentos forçados e execuções, cometidas durante o período da ditadura militar, Paulo Coelho teve a sua versão da história confirmada. Raul Seixas realmente ficou por pouco tempo em seu interrogatório, cerca de trinta minutos, enquanto o escritor foi questionado por horas pelos militares.
Após mais alguns anos, em 2019, Paulo teve acesso a um documento que apresentava um resumo do depoimento de Raul Seixas, datado de 24 de abril de 1974 e com um selo de “arquivo confidencial”. O documento dava a entender que o cantor estava ciente do que poderia acontecer ao levar o escritor para depor com ele, mas mesmo assim tomou essa decisão.
“Em 2019, Paulo Coelho viu pela primeira vez um relatório do 1º Exército, que caiu como se fosse o coco seco de uma palmeira na sua cabeça. O documento, com o selo CONFIDENCIAL, era datado de 24 de abril de 1974, um mês antes de Raul ter dito a Paulo Coelho, despreocupadamente, para segui-lo até o Dops. Era um resumo do depoimento de Raul Seixas no mesmo departamento, só que a conclusão da polícia continha a pressuposição de que o cantor teria colaborado com as prisões de Paulo e Adalgisa. Ou seja: Raul, quando levou Paulo Coelho à polícia, ou já sabia que o escritor ficaria por lá bastante tempo ou a polícia estava forjando sua incriminação.”
A parceria de composições entre Paulo e Raul ainda permaneceu por mais dois anos, resultando nos discos “Novo Aeon”, de 1975, e “Há Dez Mil Anos Atrás”, de 1976. No ano seguinte, 1977, Raul trocou de gravadora – indo da Phillips para a Warner – e de parceiro, passando a escrever ao lado de Cláudio Roberto.