“Pensei... fazer letras para esse careta que nunca tocou numa droga na vida?!”, conta Paulo Coelho sobre início da parceria com Raul Seixas
Há quem ame, há quem odeie, mas é inegável que a história de Paulo Coelho se interliga com o sucesso de Raul Seixas. Os dois foram parceiros de composição na melhor fase do artista baiano, que vai do disco de estreia,“Krig-ha, Bandolo”, de 1973, até o“Há Dez Mil Anos Atrás”, publicado em 1976.
Em “Não diga que a canção está perdida”, biografia de Raul escrita por Jotabê Medeiros, ao longo dos capítulos, o leitor descobre como se deu o início da dupla, a conexão a partir de assuntos místicos, como os discos voadores – tema que apareceu em canções como “S.O.S” e “Ouro de Tolo”, e muito mais. Neste texto, usarei o recorte temporal do contato inicial de Seixas e Coelho até o lançamento do primeiro disco.
Paulo Coelho é um jornalista e assinava artigos em uma revista nos anos 70, quando aconteceu o encontro com Seixas. Por lá, ele tinha liberdade para publicar “escritos alternativos e de pretensão filosófica”, segundo Jotabê. Raul, um produtor musical na época, conheceu Paulo a partir de um artigo sobre discos voadores, assunto que lhe interessava.
“Em maio de 1972, vestido como produtor da CBS, com o terno careta de evangelizador e a pasta 007 na mão, Raul entrou numa modesta sala do décimo andar comercial de um edifício comercial na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Raul tinha ligado para marcar um encontro com um jornalista, Augusto Figueiredo, que assinava artigos na revista 2001, destinada a escritos alternativos, com ilustrações, HQs, fotos e textos de pretensão filosófica.”
O primeiro contato entre os dois aconteceu já na entrada do local, mesmo sem Raul saber. Isso porque Augusto Figueiredo, na verdade, era um pseudônimo do Paulo Coelho, que, ao ser procurado pelo então produtor musical, agiu como se fosse somente um recepcionista e disse que o tal Augusto “tinha saído”.
“Raul foi recebido por um sujeito muito magro, cabeludo, barbudo e de voz metálica, que o olhou desconfiado. ‘Augusto não está, saiu. Quer deixar recado?’, disse o rapaz. ‘Ele demora? Posso esperar aqui?’, replicou o baiano. ‘Pode…’, disse o moço, duplamente ressabiado agora.”
Seixas esperou, esperou, esperou… até que não teve jeito. Paulo Coelho acabou sendo vencido pelo cansaço e decidiu assumir sua real identidade, curioso em saber o que aquele homem que o procurava tanto queria.
“Angustiado, Paulo não teve outro remédio, após torcer pela desistência do visitante, senão contar a verdade para o ‘careta’:
– O senhor me desculpe, mas não existe nenhum Augusto Figueiredo aqui. Quem escreveu o artigo fui eu, Paulo Coelho. Qual foi o problema?
– Mas então é com você mesmo que eu quero falar, rapaz! Muito prazer, meu nome é Raul Seixas.”
Naquela altura da carreira, Raul queria voltar a ser um cantor, coisa que já havia tentado – e fracassado, comercialmente falando – anos antes com o grupo “Raulzito e Seus Panteras”. Ele gostou tanto do que leu no artigo que queria que o jornalista fosse seu letrista e parceiro de composição. Para seguir conversando, os dois marcaram um jantar, que aconteceu na casa de Seixas.
Paulo Coelho e Raul Seixas. Foto: Reprodução
Em um trecho de “Não diga que a canção está perdida”, aparece uma anotação do próprio Paulo Coelho, feita em 25 de maio de 1972, sobre o momento em que houve uma proposta oficial de parceria. Raul pegou o violão, tocou algumas músicas para o jornalista e o convidou para escrever letras.
“Já estávamos doidos para ir embora, aí o Raul disse: ‘Ah, eu queria mostrar umas músicas minhas para vocês’. Ainda íamos ter que ouvir músicas? Fomos para o quarto da empregada e aí ele pegou o violão e tocou umas músicas maravilhosas. No final, o cara me diz: ‘Você escreveu aquela matéria de discos voadores, não é? Estou planejando voltar a ser cantor, você não quer escrever umas letras para mim?’”
Ainda na mesma anotação, Coelho conta sobre o que passava em sua cabeça nos primeiros momentos após o episódio: “Eu pensei: fazer letras? Imagina se eu vou escrever letras para esse careta que nunca tocou numa droga na vida?! [Mas] percebi: o careta sou eu, esse cara é do maior respeito. Um cara que larga o emprego que lhe dá tudo [para tentar a carreira de cantor, Raul largaria sua função de produtor na gravadora CBS e iria para a Phillips], a filhinha, a mulherzinha, a empregada, a família, os salgadinhos. Saí de lá impressionado com o cara.”
Mesmo assim, de início, Paulo Coelho ainda não via tanto futuro na parceria e pensou em continuar no Jornalismo, se candidatando para uma vaga de repórter no jornal O Globo; Raul, teimoso, o convenceu a pelo menos fazer uma canção. “Caroço de Manga”, a primeira composição oficial creditada no nome de Seixas e Coelho, era mais do cantor do que do jornalista, segundo o próprio Paulo. Ele conta: “Na primeira canção, ‘Caroço de Manga’, eu não fiz nada e ele botou meu nome para me estimular, me incentivar.”
Mas a dupla foi se alinhando e se entendendo. Aos poucos, as características filosóficas do que Paulo escrevia começaram a aparecer e se unir com as melodias de Raul. O artista pareceu ficar mais maduro, mais profundo… aquilo convenceu o diretor artístico da gravadora, Roberto Menescal, que decidiu que era hora de gravar um disco do cantor.
O álbum, o “Krig-ha, Bandolo”, dispensa apresentações. É um dos melhores da música brasileira. A dupla Raul Seixas e Paulo Coelho assinaram juntos cinco das dez faixas: “As Minas do Rei Salomão”, “A Hora do Trem Passar”, “Al Capone”, “Rockxixe” e “Cachorro Urubu”.
Um dos grandes sucessos do disco, “Metamorfose Ambulante”, foi composto somente por Raul, criado na adolescência a partir do livro “Metamorfoses”, que fazia parte da biblioteca pessoal do seu pai.
“O verso-chave da canção [‘prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo’] tinha sido rabiscado na parede do quarto por Raul quando ele tinha apenas catorze anos.”
“Ouro de Tolo”, outra canção assinada somente por Raul, não teve um toque de Paulo Coelho na letra, mas ele foi crucial na divulgação. Com sua experiência de jornalista, ele sabia como despertar interesse das pessoas e inventou uma “agenda” para que Seixas parecesse ser “mais importante” do que realmente era naquele contexto do mercado musical.
“Ele inventava reportagens, então não achava complicado inventar uma agenda para o rock star. Foi assim que ele imaginou uma estratégia para o lançamento da canção que seria o carro-chefe do disco, ‘Ouro de tolo’. Em junho de 1973, vestidos como artistas de uma esfera utópica do mundo do rock, eles convocaram imprensa, amigos e simpatizantes para um cortejo-show, uma performance de Raul e Paulo pelo meio da cidade do Rio de Janeiro. Muita gente os seguiu. Escolheram um dia de semana, botaram o circo nas ruas em pleno rush, e o cortejo foi tão falado que deu até no Jornal Nacional.”
“Ouro de Tolo” fez um sucesso considerável e impulsionou o lançamento do disco. Ela havia sido lançada anteriormente em um compacto – algo que seria como um single no tempo de hoje – e, após o episódio, os números aumentaram ainda mais.
“A música meio que remexeu o fundo de uma piscina que tinha barro na parte mais profunda. E gerou uma suspeição nos censores: ao tirar sarro de uma ilusória possibilidade de ascensão social (‘Porque foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto: e daí?’), não estaria Raul Seixas debochando também do grande slogan do marketing do regime militar, ‘o milagre econômico’”?
Não foi nesse disco que a dupla Raul e Paulo chamaria de fato a atenção dos militares. A maior polêmica mesmo veio no álbum seguinte, o “Gita”, de 1974, com a tal “Sociedade Alternativa”. Mas isso fica para o próximo texto sobre o livro “Não diga que a canção está perdida”, do Jotabê Medeiros. Até lá!