Dentro da Cena com Lipe, o filho da Chapada Diamantina

O artista Lipe no estúdio da Mega Rádio. Foto: Danilo Souza
  • Danilo Souza
  • Atualizado: 14/05/2025, 03:11h

Artista do município de Piatã, Lipe se define como um filho da Chapada Diamantina, sua região de origem. Com dois álbuns produzidos e lançados de forma independente em anos consecutivos – o “Do Contra”, de 2024, e o “Um Rombo no Peito e um ‘S’ nas Costas”, de 2025, o jovem cantor agora sai da tranquilidade de um lugar pequeno para a correria e a loucura da mini-selva de pedra que é Vitória da Conquista, onde se insere aos poucos na cena musical da cidade.

Nessa entrevista, Lipe fala com Danilo Souza sobre a transição entre as cidades e como isso influencia na sua carreira e sonoridade, além de contar a respeito da produção dos seus discos, a fase atual e o que virá no futuro.

O Dentro da Cena é produzido e apresentado por Danilo Souza, com apoio e publicação da Mega Rádio.

Danilo: Lipe, você se define como um filho da Chapada Diamantina e da cidade de Piatã. Eu venho da mesma região e sei como a beleza e calmaria daquela região pode ser uma inspiração e um refúgio para os artistas. De que modo compor e produzir música em um lugar pacato influenciou na sua arte?

Lipe: Eu acho que eu não tinha a visão da grandeza que é a região antes de sair, sabe? A gente meio que tá acostumado a lidar com serra pra todo lado, cachoeira e tal. E quando eu vim pra cá, foi aquele susto de que existe outro mundo. E por ter nascido e criado dezessete anos por lá, foi um choque largar a família, vir pra cá pra estudar e tal, parece que eu me reconheci dentro dessa identidade da Chapada Diamantina a partir disso. Eu preciso sair pra poder querer voltar, sabe? 

Nessa acabei encontrando essa coisa meio de retrocesso, de entender que tem mudanças acontecendo na Chapada e no mundo inteiro, mas a Chapada parece um lugar que parou no tempo, mas ao mesmo tempo que transiciona o tempo todo. E aí minha arte se baseia nisso pela necessidade que eu tenho de tentar resgatar coisas que eu sinto falta, sabe?

Danilo: Ainda falando de Piatã, este é um nome originado da língua Tupi e significa “pé-duro”, expressão que também é usada informalmente para se referir a pessoas que moram fora dos centros urbanos. 

Nota-se um pouco dessa identidade interiorana em algumas das suas músicas, como “Carta Ao Coronel”. Ainda há muito de Piatã em você? Quais características você trouxe da sua cidade nessa sua vinda para Vitória da Conquista?

Lipe: Muita gente me fala que eu pareço o Chico Bento aqui, sabe? Aquele episódio do “Chico Bento no shopping” e justamente porque eu tenho esse apego à identidade de lá. Eu não sabia dessa definição de Piatã, eu não tinha me ligado e é realmente isso, é uma questão de um quase negacionismo urbano, o tempo todo eu quero resgatar o que tem de melhor na simplicidade, que é morar na Chapada. Sobretudo numa das cidades que é menos [lembrada], apesar de ter muito valor cultural, turístico, inclusive comercial com a questão do café e tal,ela é meio apagada, entre tantas outras cidades que têm popularidade turística, por exemplo, Lençóis, Rio de Contas, Mucugê e tal.

É legal mostrar que tem outro lugar e que eu acho que tem tanto valor quanto os que são populares, sabe? Então eu sinto falta de ter o infinito da serra encarando assim na janela, porque é a coisa que mais me cercou a vida inteira. E ficar aqui nessa planície cercada de prédios é... meio triste, apesar de ser outra realidade, ser outra vida que também tem seus reflexos culturais e sociais, com certeza, mas é uma coisa que não me sinto tão incluso, não me sinto tão pertencente.

Lipe e seu violão. O artista apresentou duas músicas ao vivo ao longo da entrevista. Foto: Danilo Souza

Danilo: Seu trabalho de estreia, o “Do Contra”, lançado no ano passado, foi um marco em sua carreira. A sua música mais escutada, “Morangotango”, inclusive, é desse álbum. Mas, Lipe, o que é ser “do contra” para você? O que esse disco significa?

Lipe: No vídeo de divulgação eu fiz um textinho como se fosse um desabafo falando dessa sensação de retrocesso mesmo, de querer retroceder, mas sem perder o que a gente ganhou de evolução, sabe? Dessa perda cultural que a gente teve, essa perda cultural de história, tradicionalidade que a gente tá tentando resgatar, têm muitas tradições que estão se perdendo por questões políticas, por questões de comércio, questões sociais em geral. No final do áudio eu coloco, minha mãe me chama de “do contra", porque ela realmente me chama desde pequeno, porque eu sou meio teimoso mesmo. E eu lembrei desse apelido, porque eu estava tentando achar um nome pro disco. 

Eu pensei em colocar inicialmente como “Bar Dois Irmãos", porque tinha essa coisa da identidade brasileira, de “Bar Dois Irmãos” ser uma coisa que acontece muito no Brasil, mas acabou que eu não estava me reconhecendo no nome, não estava conseguindo desenvolver uma capa que seria interessante e pensei em “Fulerage”, que é outra faixa do disco. Mas também não era tão sonoro pra mim, pra capa e tal. E “do contra” me definiu como era o álbum de estreia, é o que eu estava tentando resgatar sempre com o meu trabalho de ser alguém que tá indo contra a maré e de pegar referências de pessoas que vão contra a maré, como o Tom Zé e tal. Eu tentei utilizar isso a meu favor, sabe?

Danilo: Nesse disco, você escolheu um caminho interessante para um artista independente, que é assumir a criação e a produção técnica do início ao fim, mesmo sendo bastante jovem. Como você definiria esse processo? Prazeroso ou estressante? 

Lipe:  Um pouco dos dois, com certeza. Acho que compor é a parte mais gostosa. Escrever e ouvir a música na sua cabeça e, enquanto você compõe, você já imagina com arranjo, pelo menos da minha parte é assim. E quando eu não consigo concretizar, porque toda minha instrumentação é virtual, eu não tenho instrumento de bateria e de percussão, os únicos instrumentos que eu gravei de fato foi ukulele, cavaquinho, violão, sanfona e as vozes, né, e guitarra também, é estressante você ter que colocar nota por nota no programa de produção, de ter que tentar soar o menos robótico possível. Porque não é a proposta do disco, claro que tem músicas que a proposta é, então soa legal você colocar batidas eletrônicas e tal.

Minha tentativa foi sempre constantemente trazer uma coisa que soasse indie, soasse independente, soasse característico de uma produção feita em casa, mas que também não ficasse solta, uma coisa bem concreta. Tanto que eu acho que, justamente pela minha capacidade de arranjar, eu acho que a masterização e a mixagem não ficaram tão interessantes. Já o arranjo eu acho que eu consegui desenvolver legal.

Lipe no estúdio da Mega Rádio. Foto: Danilo Souza

Danilo: A capa de “Do Contra” também é bastante representativa, pois é uma foto de quando você era criança. Já no seu segundo disco, “Um Rombo no Peito e Um ‘S’ nas Costas”, o Lipe criança dá espaço para um Lipe já crescido na foto da capa. Pode-se dizer que é um Lipe “mais maduro” neste trabalho?

Lipe: Eu acho que musicalmente sim. Eu acho que é um processo de evolução sempre, então não tem como negar isso. No primeiro disco foi mais assim, essa sensação de retrocesso, essa sensação de lembrar da infância, de trazer coisas que eu perdi, que eu sinto que perdi na cidade, porque sinto falta de muita tradição que tinha na cidade e que está se perdendo, está se tornando muito vago. A gente, hoje em dia, lá na cidade, pelo menos, não sabe diferenciar o que é o São João do carnaval e de uma festa de fim de ano porque tem a mesma cara quase, sabe? E aí a gente meio que fica nessa angústia. 

E aí já no segundo disco, eu tentei  alguma coisa mais focada no instrumental e na música, mas eu sinto que ele, pelo tempo que eu dei pro disco, eu acho que foi um disco mais livre. Ele é natural.

Do Contra - Album by Lipe - Apple Music

Capa do disco "Do Contra", lançado em 2024 por Lipe.

Danilo: Assim como no disco anterior, no segundo você novamente compôs e produziu sozinho. O que ficou de aprendizado – falando de técnica e de toda parte burocrática para lançar um álbum – entre um trabalho e outro?

Lipe: Eu tive que mudar de distribuidora na real, eu tava usando a OneRPM, que é popular por ser gratuita e tal, e aí eles fecharam a parte gratuita só pra quem tá dando realmente rendimento pra eles, aí eu tive que mudar de distribuidora. E é um pouco estressante, porque você não sabe pra onde vai, não sabe como registrar, tem que usar vídeo do YouTube, [fazer] contato com outras pessoas que distribuíram e você vê que é a maior burocracia do mundo. Tem que mexer com documentação, mexer com muita coisa que eu não estava preparado, velho, eu estava já estressado demais por acumular tanta carga musical, tanta carga de produção, de criatividade, que eu queria lançar logo, botar pra fora, principalmente no primeiro disco. E eu não conseguia porque eu não sabia como fazer e tal. 

Já no segundo, eu só me despreocupei, eu soltei, joguei na plataforma de distribuição e só soltei o disco. Tanto que eu não foquei muito em visual, eu tive a ajuda da minha namorada pra poder fazer vídeos curtos pra botar de Canvas no Spotify, imagens para divulgação e tal. Só queria soltar essas músicas, eu já produzi o suficiente. E aí eu fiz o disco e soltei.

Capa do disco "Um Rombo no Peito e Um 'S' nas Costas", publicado em fevereiro de 2025.

Danilo: Agora em Vitória da Conquista, com dois álbuns lançados, você passa a fazer parte da cena musical da cidade. Já está interagindo ou até mesmo colaborando com outros artistas daqui? 

Lipe: O que me inseriu aqui na cena conquistense foi o Musicante, que foi pelo Colégio Estadual da Bahia. 

Tenho planos já de trabalhar com outras pessoas como um álbum coletivo, já tô vendo aí algumas boas ideias e tal, mas por enquanto é fazer a música, tocar a música, sentir a música, trabalhar ela e tentar não ficar atordoado com essa sensação de estar sendo invisibilizado no meio de tanta gente que está lançando música, porque apesar da democratização da música pela parte independente, tem essa coisa de você meio que se misturar no meio de um monte de artista independente. Você rola o “Reels” no Instagram e você acha gente divulgando sua música o tempo todo

Danilo: Fazendo um paralelo com a primeira pergunta, sobre produzir música em um lugar pacato, como você enxerga a influência de uma cidade maior em sua forma de escrever canções? 

Lipe: Eu acho que já influenciou de maneira mais indireta. Eu não sei se eu sinto muita aproximação da realidade ainda daqui, pelo tempo curto que eu moro aqui, apesar de já estar há dois anos agora. E eu acho que a parte que mais me influencia são as experiências com os músicos que eu tive aqui. Musicante com certeza, o cenário de Poções, que o pessoal é muito absurdamente talentoso, o pessoal d’Os Jardins, e outros artistas aqui de Conquista que eu tenho tido contato.

Mas eu acho que ainda não me situei ainda de citar e refletir essa realidade daqui, o desconforto, muitas vezes pelo caos de não estar acostumado com essa coisa, mas também de muito conhecimento agregado, principalmente na faculdade e tal, porque a gente trabalha muita coisa relacionada com a arte. O fato de eu ter conhecido minha namorada aqui também influenciou nas minhas músicas e tal.

Danilo: E o que os ouvintes podem esperar de Lipe a partir de agora?

Lipe: Eu não sei se um álbum, mas alguns trabalhos que eu tô atrelado, sim. Eu tenho conversado com alguns artistas da minha cidade também e o tempo todo a gente tá bolando projetos, mesmo que não envolvendo as nossas próprias músicas, mas de, sei lá, tributos, de shows em conjunto. A gente tem um projeto, uma ONG, lá em Piatã, que se chama “Instituto Nossa Piatã” e a gente faz um festival cultural, da  última vez a gente fez um show tributo aos Novos Baianos, tocamos um repertório todo de Novos Baianos com banda e tal. A gente vai refazer agora no Festival Literário Gastronômico de Piatã. A gente tá sempre junto pra fazer projetos novos. 

Agora, não sei se [haverá um] próximo disco [em 2026], porque eu tô bolando uma parada que acho que vai levar um pouco de tempo e vai contar com outros artistas. Então, se tudo der certo, pode ser que saia ano que vem, pode ser que saia no outro, mas vamos ter paciência aí.

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